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Foto do escritorCristovam Buarque

Antonio Cicero viveu plenamente com lucidez, afeto e dignidade até o seu último momento



É lamentável que o avanço técnico já permite prolongar a semivida dependendo de aparelhos, mas ainda não temos avanço moral para permitir cada pessoa escolher se quer interromper esta semivida artificial do corpo sem consciência, sem autonomia, sem vida plena, sem criação, transmitindo sacrificios em vez de afeto aos familiares. Também lamentável, as crenças religiosas aceitarem a ciência enfrentando a Deus ao prolongar semivida artificial, mas considerem pecado uma pessoa escolher terminar seu sofrimento no momento em que a vida fica insuportável e deixa de ser plena. Dificil considerar a vontade de Deus condenando uma pessoa à vida que ficou insuportável e por isto, com a lucidez que Deus ainda lhe deixa, decida interromper o sofrimento em alguns dias ou meses, antes que ela chegue naturalmente. Quem está mais perto de Deus, a ciência que prorroga o sofrimento de uma vida artificial ou a moral e a lei que permite ao doente usar seus últimos dias com lucidez para antecipar a morte com dignidade e sem dor?

Antonio Cicero viveu plenamente com lucidez, afeto e dignidade até o seu último momento e ao mesmo tempo prestou um imenso serviço ao chamar atenção para o atraso moral e a injustiça das leis que impedem a interrupção do sofrimento. Para isto. ele precisou morrer fora de seu pais, longe de quase todos familiares, amigos e admiradores, sem olhar a paisagem que amava. O impedimento legal no Brasil condena as pessoas com recursos a uma morte como refugiado moral, e condena aos que não têm recursos a prolongarem suas vidas indesejadas e sofridas, que não desejam continuar.

A mensagem “descanse em paz” deveria ser permitida como despedida a um amigo ainda em vida, quando ele não deseja continuar sofrendo, sem memórias do passado, nem condições de fazer o que deseja no futuro. Negar a realização deste desejo é insensibilidade, até perversidade, daqueles que acusam quem teve a dignidade de interroper uma vida que já não lhe satisfazia e lhe provocava sofrimentos; oufalta de percepção do conflito contemporâneo entre o avanço técnico, que desafia a natureza e a moral herdada de um tempo em que a data da morte era desígnio divino, independente da ciência e do dinheiro para comprar seus aparelhos. Estranho que os muitos críticos do direito à morte assistida se omitem diante das mortes por fome, por falta de acesso à saúde básica, por bombardeios durante guerras. Aceitam que multidões sejam mortas por omissão da sociedade, por prioridades equivocadas dos governos, dentro da lei. Aceitam inclusive como justa e legal a pena de morte imposta pela sociedade na luta contra o crime, mas não que uma pessoa lúcida termine seu próprio sofrimento em uma semivida que não lhe interessa.

Antonio Cicero sentiu que perdera as condições de usar sua vida para transformar a energia do mundo na criatividade que continuaria a nos dar a alegria de sua poesia e o fascínio de suas reflexões filosóficas; que perderia emp breve as memórias do passado e a capacidade de viver plenamente o futuro; teve a lucidez e também a coragem de antecipar por meses, no máxipmo alguns anos, o final definitivo depois de um período sofrido; levantou a bandeira de luta para fazer-se legal e digno o direito de antecipar a própria morte assistida, sem necessidade de um refugio terminal em terra distante.

Obrigado Antonio Cicero por sua obra, filosófica, literária e musical, e por sua obra existencial final. Provocou tristeza, mas também entendimento, respeito e um desafio.

*Cristovam Buarque foi ministro, governador e senador
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